quinta-feira, 30 de abril de 2009

A Vida e as Obras
Aurélio Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca entre os Escolásticos. E como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de Aristóteles, e será o maior vulto da filosofia metafísica cristã, Agostinho inspira-se em Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho, pela profundidade do seu sentir e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em si mesmo o caráter especulativo da patrística grega com o caráter prático da patrística latina, ainda que os problemas que fundamentalmente o preocupam sejam sempre os problemas práticos e morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.

Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual.

Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade.

Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de idade.

Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a música . Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem .

Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.

O Pensamento: A Gnosiologia
Agostinho considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo o seu interesse central está portanto, circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos para a solução integral do problema da vida.

O problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve, superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus.

A Metafísica
Em relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é provada, fundamentalmente, a priori , enquanto no espírito humano haveria uma presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori , não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em especial a que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento cristão - agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente, negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no tempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas.

Também a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e corpo não formam aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em uma substância humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia à vontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite.

Quanto à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a natureza não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales . Deus, a princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver com o moderno evolucionismo , como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno evolucionismo.

A Moral
Evidentemente, a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino - , contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do pensamento grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor.

Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agir desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus, prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em Adão - antes do pecado original - é: poder não pecar ; depois do pecado original é: não poder não pecar ; nos bem-aventurados será: não poder pecar . A vontade humana, portanto, já é impotente sem a graça. O problema da graça - que tanto preocupa Agostinho - tem, além de um interesse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo.

Quanto à família , Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à política , ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas conseqüência do pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e social. Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente, asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de quem é amo.

O Mal
Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma vasta e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema por ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma diferença fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o assim chamado mal metafísico , que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico , que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.

Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas conseqüências - estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico).

A História
Como é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus , e resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida a metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história humana. O conceito de criação é indispensável para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível de racionalidade. O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilar dualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus , é representada pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena , mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos.

Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história das duas cidades , após o pecado original, até que ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade de Deus , recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano. Esta história, pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo, uma unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos, que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades ; elas se confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença, porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja. Esta não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na Igreja - ainda que só na unidade dialética das duas cidades , para o triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma teologia, não uma filosofia da história.
Características Gerais
A Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até o fim do século XVI, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do pensamento cristão se designa com o nome de escolástica , porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época , pelos mestres, chamados, por isso, escolásticos . As matérias ensinadas nas escolas medievais eram representadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio - gramática, retórica, dialética - e quadrívio - aritmética, geometria, astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especial desenvolvimento da dialética.

A falta dessa distinção - específica do pensamento agostiniano - manifesta-se não apenas na corrente chamada mística , mas também na orientação denominada dialética do pensamento medieval pré-tomista. Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam profundamente entre si. O segundo, com efeito, embora parta da revelação e do sobrenatural, toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante a filosofia, até procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de racionalismo (Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um racionalismo inconsciente, proveniente da ignorância da verdadeira natureza e dos verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados lógicos pudessem ser os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o escopo não era reduzir a religião aos limites da razão humana, mas levantar esta à compreensão do supra-inteligível, a uma espécie de intuição mística.

A tendência mística, pelo contrário, (São Pedro Damião e São Bernardo de Claraval) põe, acima e contra a razão e o intelecto, uma outra forma de conhecimento, de experiência do Divino: o sentimento, a fé, a vontade, o amor, culminando na união mística, no êxtase.

Depois destas premissas, podemos dividir a escolástica em três períodos, colocando o período central da escolástica a figura soberana de Tomás de Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em que persiste a tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da escolástica vai do começo do século IX (Carlos Magno) até à metade do século XIII (Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IX e X (Scoto Erígena e a questão dos universais ); séculos XI e XII (místicos e dialéticos); século XIII (o triunfo do aristotelismo).

O segundo período da escolástica é dominado pela figura soberana de Tomás de Aquino, o Aristóteles do pensamento filosófico cristão; este período coincide com a Segunda metade do século XIII.

Depois de Tomás de Aquino, a escolástica declina como metafísica (séculos XIV e XV), devido a um anacrônico e ilógico retorno ao agostinianismo. Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendências novas para a experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do pensamento moderno. Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da experiência e da concretidade, é devido em especial aos franciscanos ingleses de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, em conformidade com as tendências positivas e práticas do espírito anglo-saxônio.

Educação e Cultura na Idade Média
Carlos Magno pretendia dar uma unidade interior, espiritual, ao seu vasto e vário império e, portanto, educar intelectual, moral e religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Deste modo restauraria a civilização e a religião, a cultura clássica e o catolicismo e lhes daria incremento. Para tanto, o meio natural eram as escolas, e o clero se apresentava como o mais apto e preparado docente, quer pelo seu imanente caráter de mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de Carlos Magno, complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia fundando e desenvolvendo: formar, antes de tudo, mestres adequados para as escolas, isto é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular, seu escopo final; preparar uma classe dirigente em geral e, em especial, os funcionários do império.

Havia nos mosteiros beneditinos escolas monásticas, surgidas da própria exigência de uma observância adequada da Regra de São Bento. Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais, imitações atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo. As escolas monásticas dos mosteiros visavam, antes de tudo, a formação dos monges futuros (escolas internas), e, depois, a formação dos leigos cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino religioso e os rudimentos das ciências profanas. O programa de ensino era, inicialmente, bastante elementar: leitura, aprender a escrever, canto orfeônico e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que surgem nas cidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos mosteiros afastados das cidades - visavam, em especial, a formação do clero secular e também de leigos instruídos, para a vida civil. Presidia a estas escolas um eclesiástico chamado scholasticus , dependente diretamente do bispo, donde o nome de escolástica à doutrina e, por conseguinte, à filosofia ensinadas. Os docentes eram também eclesiásticos e denominados também scholastici . Carlos Magno dará muito incremento a ambas as escolas e, ademais, fundará junto da corte imperial a assim chamada escola palatina , que pode ser considerada como a primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com o correr do tempo, no âmbito das paróquias, as escolas paroquiais, destinadas a ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.

Para elaborar o seu vasto plano de política escolar, Carlos Magno chamou à corte Alcuíno (735-804, mais ou menos), que veio da Inglaterra, o viveiro da cultura naquela época. E sob a sua inspiração, a partir do ano 787, foram emanados os decretos capitulares para a organização das escolas, enquanto o douto inglês ditava-lhes o programa relativo, que se espalhou pelo vasto império e perdurou invariado, podemos dizer, durante toda a Idade Média.

O programa de Alcuíno abraçava as sete artes liberais, de que acima falamos, repartidas no trívio e no quadrívio. O trívio abraçava as disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta última desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as disciplinas reais: aritmética, geometria, astronomia, música, e, mais tarde, a medicina.

Sob a direção de Alcuíno, foi constituída junto da corte de Carlos Magno a famosa escola palatina . Nela ensinaram os homens mais famosos da época, como, por exemplo, o historiador Paulo Diácono, o gramático Pedro de Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia. Freqüentavam esta escolas o próprio imperador, os príncipes e os jovens da nobreza. Outras escolas surgiram, em seguida, especialmente na França, modeladas na escola palatina.

Ao lado desta instrução e educação eclesiásticas, ministradas por eclesiásticos e, sobretudo, a eclesiásticos, temos na Idade Média uma educação militar, ministrada por militares e a militares; a Igreja, bem cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação ética, religiosa, católica. Como é sabido, o feudalismo é uma organização social, política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundo o espírito dos bárbaros dominadores.

A Escolástica Pré-Tomista
Os Séculos IX e X:
Scoto Erígena e o Problema dos Universais
A história da filosofia escolástica começa propriamente com o nome de Scoto Erígena. João Scoto Erígena nasceu na Irlanda, dita Scotia maior , Eriu em língua céltica, donde o nome de Scoto Erígena. Pelo ano de 874 é chamado à corte culta e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e lecionar na escola palatina. Parece Ter falecido em França pelo ano 877. A sua obra principal é Da Divisão da Natureza (847), em cinco livros; é um diálogo entre mestre e discípulo e se inspira no neoplatonismo do pseudo Dionísio Areopagita, que Erígena traduziu do grego para o latim. Foi condenada pela Igreja (1225), e pode-se dizer que representa a falência definitiva das tentativas de síntese entre neoplatonismo emanatista e criacionismo cristão.

Erígena parte da revelação divina para, depois, penetrar os mistérios mediante a razão iluminada por Deus. Tal pretensão de penetrar racionalmente os mistérios revelados devia acabar logicamente no racionalismo e, por conseqüência, na supressão do sobrenatural, por mais ortodoxa que fosse a intenção do autor.

Eminentemente neoplatônico é o esquema especulativo de Da Divisão da Natureza : a descida da Unidade à multiplicidade, e retorno da multiplicidade à Unidade. De Deus desce-se às idéias supremas, aos gêneros, às espécies, aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a divisão da natureza, da realidade, fica assim configurada:

1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);

2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são contidas as idéias eternas, exemplares e causas das coisas);

3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas mediante o Espírito de Deus);

4°. - A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido, porém, como ômega , termo, fim da realidade, e não como alfa , princípio). Como se vê, as fases primeira e Quarta coincidem (Deus = não criado), bem como coincidem as fases Segunda e terceira (mundo = criado).

O problema dos universais , isto é, do valor dos conceitos, das idéias, problema que tão cedo e tão longamente interessou a escolástica, teve uma solução radical no pensamento escotista. Que valor têm os conceitos, que são universais, em relação e enquanto representativos das coisas, que são, ao contrário, particulares? O problema tem uma importância fundamental filosófica, não apenas lógica e dialética, mas também gnosiológica e metafísica.

As soluções desse problema oferecidas pela escolástica são substancialmente, três: a solução chamada do realismo transcendente (platônica); a solução do realismo moderado, imanente (aristotélica); a solução nominalista.

Segundo a solução do realismo transcendente , o universal, a idéia de uma realidade em si, não existe apenas fora da mente, mas também fora do objeto (universal ante rem ): - é a solução platônica, geralmente adotada pela escolástica incipiente. Segundo a solução do realismo moderado , imanente, o universal tem em si uma realidade objetiva, fora da mente, mas é imanente nos objetos singulares de que é essência, forma, princípio ativo (universal in re ): - corresponde à posição aristotélica, com a doutrina da forma que determina a matéria. A solução conceptualista-nominalista sustenta que o universal não tem nenhuma existência objetiva, mas apenas mental (universal post rem ), ou até puramente nominal (nominalismo) - no mundo clássico esta posição é defendida pelos sofistas, estóicos, epicuristas, céticos, isto é, pelas gnosiologias empirista e sensitista.

Os Séculos XI e XII:
Místicos e Dialéticos
Depois da decadência cultural que se seguiu à renascença carolíngia, começa e se manifesta nos séculos XI e XII um renascimento especulativo. E isto não obstante a luta dos teólogos, dos místicos, contra a ciência (a filosofia) por eles considerada um resíduo pagão, uma distração mundana, vaidade e orgulho; e, portanto, contra os filósofos, e os dialéticos que a cultivavam. Os maiores representantes da corrente mística são: São Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da corrente dialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no século XI e Pedro Abelardo no século XII.

São Pedro Damião, cardeal e arcebispo ostiense, conselheiro do monge Hildebrando, mais tarde Papa Gregório VII, escreveu Da Divina Onipotência . Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até colocá-la acima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí a vaidade da ciência, da filosofia para entender Deus e as suas obras. São Bernardo de Claraval rejeita, asceticamente, o saber profano como um perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da própria miséria, na compaixão para com a miséria do próximo, na contemplação de Deus, dos divinos mistérios, de Cristo crucificado, e culmina no êxtase. O caminho da sabedoria é a humildade.

Santo Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do mosteiro beneditino de Bec na Normandia e, depois, arcebispo de Canterbury na Inglaterra. As suas obras principais são: O Monologium , onde se propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e evidente, capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o primeiro grande filósofo medieval, após Scoto Erígena. Também ele é um platônico-agostiniano. O seu lema é: creio para compreender , o que significa partir da revelação divina, da fé e não da razão; mas é preciso penetrar depois a fé mediante a razão.

O nome de Anselmo de Aosta é ligado ao famoso argumento ontológico , a priori , para demonstrar a existência de Deus; este argumento é contido no Proslogium . Pretende ele demonstrar a existência de Deus, partindo do mero conceito de Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser perfeitíssimo e, logo, Deus deve também existir realmente, do contrário não mais seria perfeitíssimo, faltando-lhe a existência. Em realidade, o argumento ontológico não vale: porquanto não podemos, no nosso conhecimento, passar da ordem lógica para a ordem ontológica, das idéias aos fatos, mas deve-se passar das coisas às idéias, da ordem real à ordem ideal.

Pedro Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde, professor famoso em Paris, centro cultural do mundo católico, tornou-se religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras, após uma aventura amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas conseqüências. Acusado de heresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das mais originais figuras do mundo medieval, mesmo faltando-lhe a profundidade e a capacidade sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão, Abelardo é, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e sistemático, com um grande pendor para a crítica e a dialética.

Escreveu as obras seguintes: História das Calamidades , conto biográfico da sua aventura com Heloísa; Dialética ; Conhece-te a ti mesmo ; Sic et non . No ensaio ético Conhece-te a ti mesmo valoriza, na vida moral, o elemento subjetivo, intencional, - elemento descurado na Idade Média - em confronto com o elemento objetivo, legal. Reconhecendo embora que são necessários os dois elementos, a fim de que haja ação plenamente moral, Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado com reta intenção, ainda que objetivamente mau, do que um ato executado conforme a lei, mas com intenção má. Também interessante é a sua posição crítica na pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, a investigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non - coleção de sentenças contrastantes dos padres sobre assuntos da Escritura e da teologia - Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários , isto é, dos autores dos libri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro Lombardo, (século XII), chamado precisamente magister sententiarum . Os livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais ou menos críticas - das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação, queda, redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas medievais, especialmente as tomistas, que são construções sistemáticas elaboradas criticamente.

Encerra-se assim o século XII e está nos albores o século XIII, o século de ouro da escolástica e do pensamento filosófico cristão.
O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles
A atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente lógico-dialética e, logo, formal. Esta atividade formal, intensa e penetrante, esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E tal conteúdo lhe foi proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico integral, que representa o ápice do pensamento helênico. O mundo latino-cristão, escolástico, depois de conhecido Aristóteles através da cultura árabe, apaixonou-se pela filosofia aristotélica, que estudou intensamente. Este movimento cultural e filosófico se desenvolveu especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e organizadas eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens religiosas, os quais a tudo renunciaram, salvo à ciência e à caridade.

A atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma decidida aversão à filosofia que queria constituir-se unicamente com meios racionais, e um retorno ao agostianismo (São Boaventura); um culto idolátrico para com o Estagirita, que foi identificado com a própria razão humana e preferido, no fundo, à revelação cristã, quando não concordava com a razão (averroísmo latino); uma aceitação e valorização do sistema aristotélico, mas crítica e racional, pelo qual se chegou à construção de uma filosofia distinta e autônoma, mas em harmonia hierárquica com a fé (Tomás de Aquino).

Como dissemos, foram os árabes - e secundariamente os hebreus - que levaram ao conhecimento do mundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os árabes, após terem conquistado o oriente helenista, entraram em contato com a cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suas conquistas até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura impregnada de aristotelismo. Os árabes foram admiradores de Aristóteles e da sua filosofia, que salvaram das invasões bárbaras durante as trevas medievais do Ocidente latino. E assim, originariamente bárbaros eles mesmos, os árabes, por sua vez, foram civilizados pelo pensamento grego, aristotélico. Os maiores filósofos árabes conhecedores de Aristóteles e que influíram profundamente sobre o Ocidente latino-cristão, foram Avicena e Averroés. Avicena tentou harmonizar a filosofia aristotélica com a religião islâmica. Averroés , - o famoso comentador de Aristóteles - afirmava ao invés a subordinação da religião a filosofia quando as argumentações delas fossem contrastantes, e considerava a religião como uma filosofia simbólica para o vulgo.

Era preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os comentários árabes. Foi o que fez, nos meados do século XII, uma sociedade de homens cultos surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde sentiu-se a necessidade de traduzir diretamente do grego as obras de Aristóteles, e, por conselho de Tomás de Aquino, Guilherme de Maerbeke (falecido em 1286) fez essa tradução, que proporcionou aos latinos o conhecimento do genuíno pensamento do Estagirita.

Ao mesmo tempo se desenvolveram as universidades , as grandes universidades medievais, surgidas geralmente das escolas episcopais; famosas mais que todas as outras, foram as universidades de Paris e de Oxford. A universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média, desenvolveu especialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na mentalidade aristotélica, ao passo que a universidade de Oxford dedicou-se especialmente às ciências naturais, inspirando-se na mentalidade agostiniana. O conjunto dos professores e dos alunos da universidade de Paris, em princípios do século XII, constituiu um corpo único, uma universitas única, e obteve das autoridades civis e religiosas reconhecimento jurídico e grandes privilégios. Especialmente os papas protegeram a universidade de Paris, devido à importância que tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a teologia. Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela cultural da ortodoxia católica , o seminário dos filósofos e dos teólogos de todo mundo.

Nessas universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e por desejo dos papas, entraram e tiveram preponderância professores pertencentes as duas ordens religiosas surgidas no século XIII: os Dominicanos , fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os Franciscanos , fundados por São Francisco de Assis, italiano. A característica nova e comum destas duas ordens religiosas foi a pobreza individual e coletiva, donde o nome de mendicantes a elas atribuído, e também certa liberdade a respeito das obrigações conventuais, para melhor facultar o cultivo do estudo e a pregação apostólica entre o povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo, à ciência, inspirando-se no pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua maior influência entre as classes sociais elevadas; os franciscanos, ao contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e tiveram uma enorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade agostiniana.

Os Filósofos Franciscanos
Os filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à atitude prática, afetiva, sentimental do Pobrezinho de Assis que entrevia Deus e Jesus Cristo em todas as coisas. E julgaram os filósofos franciscanos que, para tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu misticismo e voluntarismo - julgando inapto para esse fim o racionalismo, o empirismo e o intelectualismo aristotélicos.

O maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São Boaventura (1221-1274); nasceu na Itália, estudou em Paris e, mais tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obras principais são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da Mente para Deus, sobre a Redução das Artes à Teologia .

Segundo São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas prática e religiosa, isto é, a filosofia deve levar a Deus, que se atinge imediatamente em todas as coisas e se possui pela união mística, como ele descreve no Itinerário . A gnosiologia de Boaventura inspira-se no iluminismo agostiniano, que lhe sugeriu a prova intuitiva da existência de Deus, enquanto ele é imediatamente presente ao espírito humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três princípios diretamente opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma matéria geral sem as formas específicas; a pluralidade das formas em um mesmo ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a universalidade da matéria fora de Deus, porque todos os seres são compostos de matéria e de forma, inclusive as essências angélicas e as almas humanas. A psicologia de Boaventura, pois, sustenta que a alma humana é uma substância completa independentemente do corpo, composta de forma e matéria, auto-suficiente.

Diametralmente oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado averroísta, que aceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e, por conseqüência, será inteiramente infecundo. Esta orientação filosófica é chamada averroísta, porquanto admite - como admitia Averroés - que haja teses filosóficas em contraste com o teísmo da religião, ainda que pareça limitar-se a sustentar a existência de duas verdades paralelas e contrastantes, e não chegar até subordinar a religião à filosofia. O maior representante do averroísmo latino é Siger de Brabante (falecido pelo ano de 1284), professor na universidade parisiense, condenado mais tarde pela Igreja. A sua obra principal é Da Alma Intelectiva . As teses mais notáveis de Siger em contraste com o cristianismo são: a negação da providência divina; a afirmação da eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na espécie humana e a conseqüente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre estas duas posições extremadas - de idolatria ou de irredutível hostilidade - a respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que realizará a justificação da filosofia e da teologia.

A Escolástica Pós-Tomista
O tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para poder súbita e definitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão medieval. Houve, portanto, no mesmo século XIII, logo depois de uma reação violenta contra o tomismo, um retorno especulativo ao agostinianismo, que julgou encobrir o seu anacronismo, tentando uma superação do racionalismo tomista. Entretanto esse movimento terminará nas posições fideístas do pré-tomismo, acentuadas e tornadas piores após a poderosa construção crítica e racional do Aquinate; e terminará, consequentemente, na ruína da metafísica, da filosofia, da ciência. A escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problema da concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela escolástica clássica, donde surgirão a história e a ciência modernas - com suas técnicas - que constituem o valor do pensamento moderno.

O centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na Inglaterra, cujas características tendências empiristas, experimentais, positivas, práticas, são conhecidas.

Rogério Bacon
Rogério Bacon (1210-1294), nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e estudou nas universidades de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado algum tempo em Oxford, foi obrigado a deixar a cátedra. Estabeleceu-se então em Paris, onde levou uma vida agitada e foi condenado à prisão pelos próprios superiores da sua ordem. Crítico agressivo das maiores autoridades da sua época, foi um temperamento genial e original, enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais importante é a chamada Obra Maior ; publicou ainda a Obra Menor e a Terceira Obra .

Segundo Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a experiência. A autoridade dá-nos a crença, a fé não porém a ciência, porquanto não nos fornece a compreensão das coisas que formam o objeto da crença. A razão proporciona essa compreensão, quer dizer, a ciência; no entanto, não consegue distinguir o sofisma da demonstração verdadeira, se não achar fundamento e confirmação na experiência. A ciência experimental constitui a fonte mais sólida da certeza. Conforme Bacon, todavia, deve-se entender por experiência não apenas a que se alcança pelos sentidos externos e nos oferece o mundo corpóreo, mas também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É, como se vê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do agostinianismo, Bacon aceita também a unidade entre filosofia e teologia, que Tomás tinha distinguido.

João Duns Scoto
O maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns Scoto, o doutor sutil. Também ele, inglês e franciscano, foi aluno e professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308. Suas obras principais são: a Obra Oxoniense , isto é, o tradicional comentário das sentenças de Pedro Lombardo; os Teoremas Sutilíssimos , as Questões Várias , a Obra Parisiense . Nestas obras revela-se um crítico e um pensador de muito superior a São Boaventura.

O agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de filosofia, entendida como instrumento para entender a fé e não como obra autônoma do espírito, como julga Tomás de Aquino. E, por sua vez, a teologia não é - segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa - como julga Aquinate - mas unicamente prática, em conformidade com o espírito do voluntarismo agostiniano.

A gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo não tanto como participação da inteligência humana na luz divina, quanto como sendo a espontaneidade e a independência do intelecto com respeito ao sentido. Em todo caso, está contra o chamado empirismo aristotélico-tomista, conforme o qual o nosso conhecimento começa pela sensibilidade. Scoto concede, em linha de fato, o empirismo do nosso conhecimento; não o admite em linha de direito, como exige o tomismo. E isso seria devido - segundo o doutor sutil - à escravidão da alma com respeito ao corpo, decorrente do pecado. Pelo contrário, deveria a alma, por sua natureza, conhecer diretamente as essências, não só as materiais mas também as espirituais.

Na teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o tomismo) ensina que Deus não é conhecido por intuição; a existência de Deus é demonstrável apenas com argumentos a posteriori , embora procure também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori . Quanto à natureza divina, o atributo essencial de Deus seria a infinidade.

Na psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no agostinianismo. É a doutrina do conhecimento intuitivo da essência da alma, princípio de todos os demais conhecimentos. E também inspira-se no agostinianismo a doutrina de certa independência da alma com respeito ao corpo; seria a alma, por natureza, uma substância completa.

Com efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são compostos de matéria e de forma. A matéria não é mera potência, inexistente sem a forma, mas tem uma realidade sua própria; a forma não é única, mas há multiplicidade de formas em cada indivíduo. A individuação não depende da matéria (pelo que o indivíduo fica incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal individual, chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si subsistente e à hierarquia das formas); destarte, o indivíduo se tornaria intelectualmente cognoscível.

Contra o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a vontade não depende do intelecto, mas o intelecto depende da vontade. A tarefa do homem é conhecer para querer e amar; na vida eterna, Deus seria atingido, na visão beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo intelecto. Scoto põe também em Deus esse primado de vontade sobre o intelecto. Desse modo, as coisas criadas por Deus não dependem fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade divina. E a própria ordem ética não é intrinsecamente boa por motivo racional, mas unicamente porquanto é querida por Deus, que poderia impor uma ordem moral oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, o homicídio, etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas.

Guilherme de Occam
Guilherme de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo de Scoto: discípulo, no sentido de que desenvolve o individualismo de haecceitas escotista no nominalismo, que ele fez reviver no ambiente experimental da universidade de Oxford, depois do realismo imanente aristotélico-tomista. Guilherme nasceu em Occam na Inglaterra pouco antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou e lecionou na Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé, refugiou-se junto do Imperador, então em luta contra o Papa, e escreveu várias obras para defender o imperador contra a Santa Sé. Faleceu pelo ano 1350. Suas obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo: Sete Várias Questões , Suma de Toda a Lógica , Centilóquio Teológico .

Segundo Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual, porquanto o primeiro é intuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o primeiro dá-nos a realidade, concreta e individual, ao passo que o segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais (as idéias gerais), e, por conseguinte, um conhecimento vago e confuso deles, que não nos permite distingui-los um do outro. O conhecimento sensível dá-nos as relações reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se conhece só pela experiência), ao passo que o conhecimento intelectual nos proporciona conhecer as relações lógicas entre conceitos abstratos, sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em conclusão, a sensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais objetos percebidos como semelhantes. O conceito, pois, é um sinal natural, representado pelo nome que é, porém, um sinal artificial, variável segundo as diversas línguas.

Estamos na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse experimentalismo deriva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína do conceito e, conseqüentemente, da ciência, da filosofia, da moral, etc. E deriva também a ruína das próprias noções de substância e causa, indispensáveis à própria ciência natural, porquanto essas noções de substância e causa não são experimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus não serem sensíveis, segue-se que não são cognoscíveis. Deus não se pode provar a posteriori mediante o princípio de causalidade, válido empiricamente; e também não se pode provar - pela via de causalidade - a alma, de que é impossível demonstrar cientificamente a imortalidade.

Dado que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o voluntarismo divino escotista, a vontade de Deus é absolutamente livre para criar uma moral mesmo oposta à presente, e para estabelecer uma outra ordem sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia Ter-se encarnado num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à física, que nos faz conhecer os seres materiais, sensíveis, a lógica que nos ilustra as relações entre os conceitos. Portanto, nenhuma metafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc., é abandonado inteiramente à Revelação, à fé (fideísmo). Esta absoluta divisão entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à do averroísmo da dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o firmar-se do humanismo moderno, bem cedo a razão se porá contra a fé e a substituirá. O ocamismo tem um êxito vasto e imediato nos séculos XIV e XV; mas logo declina, degenerando num formalismo lógico. Com ele declina e, historicamente, termina a escolástica medieval.
A Vida e as Obras
Após uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica chega ao seu ápice com Tomás de Aquino. Adquire plena consciência dos poderes da razão, e proporciona finalmente ao pensamento cristão uma filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamento escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com Agostinho, rico de elementos helenistas e neoplatônicos, além do patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante.

Para Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na sistematização imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido com os comentários pormenorizados, especialmente árabes.

Nasceu Tomás em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão. Recebeu a primeira educação no grande mosteiro de Montecassino, passando a mocidade em Nápoles como aluno daquela universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana, renunciando a tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por parte de sua família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo como mestre Alberto Magno, primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia.

Também Alberto , filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280), abandonou o mundo e entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na universidade de Paris, onde teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhou a Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua ordem. A atividade científica de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciências naturais, filosofia, teologia, exegese, ascética.

Em 1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269, quando regressou à Itália, chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de Siger de Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274, viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade.

As obras do Aquinate podem-se dividir em quatro grupos:

1. Comentários: à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à Sagrada Escritura; a Dionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo.

2. Sumas: Suma Contra os Gentios , baseada substancialmente em demonstrações racionais; Suma Teológica , começada em 1265, ficando inacabada devido à morte prematura do autor.

3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade , Da alma , Do mal , etc.); Questões várias .

4. Opúsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas ; Da Eternidade do Mundo , etc.

O Pensamento: A Gnosiologia
Diversamente do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás considera a filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para resolver o problema do mundo. Considera também a filosofia como absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.

A gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a aristotélica - é empírica e racional, sem inatismos e iluminações divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível e intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, realiza-se mediante a assim chamada espécie sensível . Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto material na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do sinete na cera, sem a materialidade do sinete; a cor do ouro percebido pelo olho, sem a materialidade do ouro.

O conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas transcende-o. O intelecto vê em a natureza das coisas - intus legit - mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a sua atividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua individualidade, temporalidade, espacialidade, etc., mas sem a matéria - o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas implicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne explícito, atual, é preciso extraí-lo, abstraí-lo, isto é, desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a espécie inteligível , representando precisamente o elemento essencial, a forma universal das coisas.

Pelo fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize, desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. Este intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a qual ilumina ela o mundo sensível para conhecê-lo; no entanto, é absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos diferentemente de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade da alma individual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda i iluminismo agostiniano e o panteísmo averroísta. O intelecto que propriamente entende o inteligível, a essência, a idéia, feita explícita, desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto passivo , a que pertencem as operações racionais humanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.

Como no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam uma unidade mediante a espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual, mediante a espécie inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. Compreendendo as coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas, compreendendo-lhes as essências, as formas.

É preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível não é a coisa entendida, quer dizer, a representação da coisa (id quod intelligitur) , pois, neste caso, conheceríamos não as coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no fenomenismo. Mas, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extramentais (é, logo, id quo intelligitur ). E isto corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante conhecermos coisas e não idéias; mas as coisas podem ser conhecidas apenas através das espécies e das imagens, e não podem entrar fisicamente no nosso cérebro.

O conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est adaequatio speculativa mentis et rei . E tal adequação é possível pela semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento inteligível, a essência, a forma, a idéia. O sinal pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente, é a evidência; e, visto que muitos conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.

Todos os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por conseqüência, todos os conhecimentos sensíveis são, por si, verdadeiros. Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas interpretações dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo intelectual, poucos são os nossos conhecimentos evidentes. São certamente evidentes os princípios primeiros (identidade, contradição, etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência mediante a demonstração, como já dissemos. É neste processo demonstrativo que se pode insinuar o erro, consistindo em uma falsa passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre o intelecto e as coisas.

A demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do universal para o particular. No entanto, os universais, os conceitos, as idéias, não são inatas na mente humana, como pretendia o agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas, universal e necessária.

A Metafísica
A metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica geral - ou ontologia - tem como objeto o ser em geral e as atribuições e leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes especificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí temos a teologia racional - assim chamada, para distingui-la da teologia revelada; a psicologia racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da moderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia ou filosofia da natureza (que estuda a natureza em suas causas primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza em suas causas segundas).

O princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em potência e ato. Ato significa realidade, perfeição; potência quer dizer não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade absoluta, mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma determinada perfeição, capacidade de concretizar-se. Tal passagem da potência ao ato é o vir-a-ser , que depende do ser que é ato puro; este não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a potência pura que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode tornar-se todas as coisas, e chama-se matéria.

A Natureza
Uma determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para toda a realidade, é o princípio da matéria e de forma. Este princípio vale unicamente para a realidade material, para o mundo físico, e interessa portanto especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é absoluto, não-ente; é, porém, irreal sem a forma, pela qual é determinada, como a potência é determinada, como a potência é determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa existir um ser completo e real (substância ). A forma é a essência das coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, a concretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente existem (esta água, este ouro, este vidro), depende da matéria, que portanto representa o princípio de individuação no mundo físico. Resume claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada ( a matéria ), outra ativa e determinante ( a forma )" .

Além destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais têm outras duas causas: a causa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a que realiza o sínolo , a saber, a síntese daquela determinada matéria com a forma que a especifica. A causa final é o fim para que opera a causa eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada no universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro causas - material , formal , eficiente , final ; estas causas constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do universo físico.

O Espírito
Quando a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está dentro do ser, chama-se alma . Portanto, têm uma alma as plantas (alma vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e os animais (alma sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto, a psicologia racional , que diz respeito ao homem, interessa apenas a alma racional. Além de desempenhar as funções da alma vegetativa e sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino, existe uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e a alma superior cumpre as funções da alma inferior, como a mais contém o menos.

No homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas transcendendo-o - porquanto além das atividades vegetativa e sensitiva, que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais, como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é orientada para entidades imateriais, como os conceitos; e, por conseqüência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial, espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana é livre, indeterminada - ao passo que o mundo material é regido por leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a faculdade de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que pelo fato de ser imaterial, isto é, espiritual, não é composta de partes e, por conseguinte, é imortal.

Como a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, isto é, é imortal, assim transcende a origem material do corpo e é criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo corpo já formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás sustenta que a alma, espiritual embora, é unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma. Desse modo o corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua vez, ainda que imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu instrumento indispensável.

Deus
Como a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental da potência e do ato, mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a teologia racional tomista depende - e mais intimamente ainda - da doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta que Deus não é conhecido por intuição, mas é cognoscível unicamente por demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e racional, não recorre a argumentações a priori , mas unicamente a posteriori , partindo da experiência, que sem Deus seria contraditória.

As provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em comum a característica de se firmar em evidência (sensível e racional), para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a primeira dessas provas - que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se diretamente na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma em dois elementos, cuja solidez e evidência são igualmente incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do movimento, das causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas ou da ordem que entre elas reina; e uma aplicação do princípio de causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à causa primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a ordem à inteligência ordenadora".

Se conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, ainda mais limitado é o conhecimento que temos da essência divina, como sendo a que transcende infinitamente o intelecto humano. Segundo o Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa), entretanto conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de Deus, graças precisamente à famosa doutrina da analogia. Esta doutrina é solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus se deve realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança com a causa. A doutrina da analogia consiste precisamente em atribuir a Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as imperfeições, isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a respeito de Deus é, portanto, um conjunto de negações e de analogias; e não é falso, mas apenas incompleto.

Quanto ao problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base no conceito de criação, que consiste numa produção do mundo por parte de Deus, total, livre e do nada.
A Moral
Também no campo da moral , Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral tomista é essencialmente intelectualista, ao passo que a moral agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade não é condição de conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não depende da vontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da divina essência, isto é, a ordem moral é imanente, essencial, inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essência divina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente significa agir racionalmente, em harmonia com a natureza racional do homem.

Entretanto, se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que executa livremente esta ordem moral. Tomás afirma e demonstra a liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísico fundamental. A vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto tivesse a intuição do bem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria determinada por este bem infinito, conhecido intuitivamente pelo intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas com seres e bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não é mister acrescentar que, para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o elemento objetivo, a lei, que se atinge mediante a razão; e o elemento subjetivo, a intenção, que depende da vontade.

Analisando a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e portanto forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do gênero humano; a Segunda forma é o estado, de que depende o bem comum dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, se compreende como o indivíduo não é um meio para o estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás de Aquino, o estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material (econômica), mas também positiva (organizadora) e espiritual (moral). Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém, subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como escopo o bem eterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como escopo o bem temporal dos indivíduos.

Filosofia e Teologia
Em torno do problema das relações entre filosofia e teologia , ciência e fé, razão e revelação, e mais precisamente em torno do problema da função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá uma solução precisa e definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base no sólido sistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação, agostiniana, que levava inevitavelmente a uma confusão da teologia com a filosofia. Destarte, é finalmente conquistada a consciência do que é conhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possível demonstração racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não evidentes, transcendentes à razão, mistérios, e igualmente ininteligíveis suas condições lógicas.

Em todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé, porquanto procede da mesma Verdade eterna. E, com relação à fé, deve a razão desempenhar os papéis seguintes:

1. A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o que é impossível, mas com argumentos extrínsecos, de credibilidade (profecias, milagres, etc.), que garantem a autenticidade divina da Revelação.

2. A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentos prováveis.

3. A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo que a sacra teologia é ciência, e ciência em grau eminente, porquanto essencialmente especulativa, ao passo que, para os agostinianos, é essencialmente prática.

Tomás, portanto, não confunde - como faz o agostinianismo - nem opõe - como faz o averroísmo - razão e fé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e a fé; tal unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana; esta determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana tornou possível a averiguação das reais, efetivas vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente, racionalmente, inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação e, precisamente, os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz.

O Tomismo
O tomismo afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a orientação do pensamento platônico-agostiniano em nome do racionalismo aristotélico, que pareceu um escândalo, no campo católico, ao misticismo agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o início da filosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é concebida qual construção autônoma e crítica da razão humana.

Sabemos que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano depende de uma particular iluminação divina; segundo esta doutrina, portanto, o espírito humano está em relação imediata com o inteligível, e tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia inatista, Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica aristotélica, em virtude da qual o campo do conhecimento humano verdadeiro e próprio é limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, no homem, um intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um intelecto concebido como uma faculdade vazia, sem idéias inatas - é uma tabula rasa , segundo a famosa expressão - ; e o inteligível nada mais é que a forma imanente às coisas materiais. Essa forma é enucleada, abstraída pelo intelecto das coisas materiais sensíveis.

Essa gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a uma antropologia, assim como a gnosiologia platônico-agostiniana era conexa a uma correspondente metafísica e antropologia. Por isso a alma era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza angélica, unida extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo era-lhe mais de obstáculo do que instrumento. Por conseguinte, o conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e acima dos sentidos, mediante contato direto com o mundo inteligível; precisamente como as inteligências angélicas, que conhecem mediante as espécies impressas , idéias inatas. Vice-versa, segundo a antropologia aristotélico-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina da forma , a alma é concebida como a forma substancial do corpo. A alma é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda que destinada a sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um instrumento indispensável ao conhecimento humano, que, por conseqüência, tem o seu ponto de partida nos sentidos.

Terceira característica do agostinianismo é o assim chamado voluntarismo, com todas as conseqüências de correntes da primazia da vontade sobre o intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é o intelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas as relativas conseqüências. O conhecimento, pois, é mais perfeito do que a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, ao passo que a vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na ordem natural como na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança não consiste no gozo afetivo de Deus, mas na visão beatífica da Essência divina.

A Existência de Deus é Evidente?
Sobre a existência de Deus, três questões se colocam:

1. A existência de Deus é uma verdade evidente?

2. Ela pode ser demonstrada?

3. Deus existe?

1. - Parece que a existência de Deus é evidente. Com efeito, chamamos verdades evidentes aquelas cujo conhecimento está em nós naturalmente, como é o caso dos primeiros princípios. Ora, de acordo com o que diz Damasceno: "O conhecimento da existência de Deus é inato em todos". Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.

2. - Por outro lado, são ditas evidentes as verdades que conhecemos desde que compreendamos os termos que as exprimem. É o que o Filósofo (Últimos Analíticos, I, 3) atribui aos primeiros princípios da demonstração. De fato, quando sabemos o significado de todo o significado da parte, sabemos, de imediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que tenhamos compreendido o sentido da palavra "Deus", estabelece-se, de imediato, que Deus existe. De fato, essa palavra designa uma coisa de tal ordem que não podemos conceber algo que lhe seja maior. Ora, o que existe na realidade e no pensamento é maior do que o que existe apenas no pensamento. Daí resulta que o objeto designado pela palavra Deus, que existe no pensamento, desde que se compreenda a palavra, também existe na realidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.

3. - Além disso, a existência da verdade é evidente. Pois, aquele que nega a existência da verdade, concorda que a verdade não existe. Mas se a verdade não existe, a não-existência da verdade é uma afirmação verdadeira. E se alguma coisa há de verdadeira, a verdade existe. Ora, Deus é a própria verdade, segundo o que diz São João, 14, 6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.

Mas, em compensação, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente, conforme nos mostra o Filósofo (Metafísica, 4 e Últimos Analíticos, I, 10), a propósito dos primeiros princípios da demonstração. Ora, o oposto da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o salmo 52, 1: "O insensato diz em seu coração que não há Deus". Logo, a existência de Deus não é evidente.

Resposta - Temos duas maneiras para dizer que uma coisa é evidente. Ela o pode ser em si mesma e não por nós; ela o pode ser em si mesma e por nós. De fato, uma proposição é evidente quanto o atributo está incluído no sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, de fato, pertence à noção de homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o atributo de uma proposição, essa proposição será conhecida de todos. É verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que os termos são coisas gerais que todos conhecem, como o ser e o não-ser, o todo e a parte, etc. Mas, se alguns não sabem o que são o atributo e o sujeito de uma proposição, é certo que a proposição será evidente em si mesma, mas não para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É por isso que Boécio diz: "Certos juízos só são conhecidos pelos sábios, por exemplo, aquele segundo o qual os seres incorpóreos não estão num mesmo lugar". Por conseguinte, eu afirmo que a proposição "Deus é", considerada em si mesma, é evidente por si mesma, uma vez que o atributo é idêntico ao sujeito. Deus, de fato, é seu ser. Mas como não sabemos o que é Deus, ela não é evidente para nós; tem necessidade de ser demonstrada pelas coisas que, menos conhecidas na realidade, o são mais para nós, isto é, pelos efeitos.

À primeira objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento da existência é naturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a felicidade do homem. De fato, o homem deseja naturalmente a felicidade e, aquilo que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas isto não é, propriamente falando, conhecer a existência de Deus; exatamente como se pudéssemos saber que alguém chega, sem conhecer Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, colocam o supremo bem do homem nas riquezas, outros o colocam nos prazeres, outros alhures.

À segunda, podemos responder que aquele que ouve pronunciar a palavra Deus pode ignorar que essa palavra designa uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior. Alguns, com efeito, acreditaram que Deus fosse um corpo. Mesmo que sustentemos que todos entendem a palavra Deus nesse sentido, isto é, no sentido de uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior, isto não significa que todos representam a existência dessa coisa como real e não como representação da inteligência. E não se pode concluir sua existência real salvo se se admite que essa coisa existe realmente. Ora, isso não é admitido por aqueles que rejeitam a existência de Deus.

À terceira, devemos responder que a existência da verdade indeterminada é evidente por si mesma, mas que a existência da primeira verdade não é evidente em si mesma para nós.

A Vontade Quer Necessariamente Tudo o Que Deseja?
Dificuldades: Isso parece exato; de fato Dionísio diz que o mal está fora do objeto da vontade. Por conseguinte, ela tende necessariamente para o bem que lhe é proposto.

O objeto está para a vontade assim como o motor está para o móvel. Ora, o movimento do móvel segue, necessariamente, o impulso do motor. Por conseguinte, o objeto da vontade move-a necessariamente. Assim como o que é conhecido pelos sentidos é objeto da afetividade sensível, assim o que é conhecido pela inteligência é objeto do apetite intelectual ou vontade. Mas o objeto dos sentidos move, necessariamente, a afetividade sensível; segundo Santo Agostinho, os animais são arrastados pelo que vêem. Por conseguinte, parece que o objeto conhecido pela inteligência move a vontade necessariamente.

Entretanto: Santo Agostinho diz que a vontade é a faculdade pela qual pecamos ou vivemos segundo a justiça. Desse modo, ela é capaz de desejar coisas contrárias. Por conseguinte, ela não quer, por necessidade, tudo o que deseja.

Conclusão: Eis como podemos prová-lo. Assim como a inteligência adere, necessária e naturalmente, aos primeiros princípios, assim a vontade adere ao fim último. Ora, existem verdades que não possuem relação necessária com os primeiros princípios; tais são as proposições contingentes cuja negação não implica na negação desses princípios. A inteligência não concede, necessariamente, seu assentimento a tais verdades. Mas existem proposições necessárias que possuem esta relação necessária; tais são as conclusões demonstrativas cuja negação significa a negação dos princípios. A estas últimas a inteligência concede seu assentimento necessariamente, na medida em que reconhece a conexão das conclusões com os princípios por meio de uma demonstração. Faltando isto, o assentimento não é necessário.

O mesmo acontece com relação à vontade. Existem bens particulares que não possuem relação necessária com a felicidade, visto que se pode ser feliz sem eles. A tais bens, a vontade não adere necessariamente. Mas existem outros bens que implicam nessa relação; são aqueles pelos quais o homem adere a Deus, pois é só nele que se acha a verdadeira felicidade. Todavia, antes que essa conexão seja demonstrada como necessária pela certeza da visão divina, a vontade não adere necessariamente a Deus nem aos bens que a ele se relacionam. Mas a vontade daquele que vê Deus em sua essência adere necessariamente a Ele, do mesmo modo como agora nós queremos, necessariamente, ser felizes. Por conseguinte, é evidente que a vontade não quer, por necessidade, tudo o que deseja.

Solução: A vontade não pode tender para nenhum objeto, se este não se lhe apresenta como um bem. Mas como existe uma infinidade de bens, ela não é necessariamente determinada por um só.

A causa motora produz, necessariamente, o movimento do móvel, no caso em que a força dessa causa ultrapassa de tal maneira o móvel que toda capacidade que este tem de agir fica submetida à causa. Mas a capacidade da vontade, na medida em que se dirige para o bem universal e perfeito, não pode estar inteiramente subordinada a qualquer bem particular. Desse modo, ela não é, necessariamente, acionada por ele.
O Direito Romano
A obra universal e imperecível, que no Oriente foi a religião, na Grécia a filosofia, em Roma foi o direito, segundo a índole prática do gênio romano. O direito romano não é uma filosofia do direito, mas uma sistematização jurídica; não é uma construção teórica, mas a codificação de uma longa e vasta prática. Tal sistematização jurídica, todavia, implica numa concepção filosófica, numa filosofia do direito, num direito natural, que o pensamento grego pode deduzir da sistematização jurídica romana. O pensamento grego serviu à codificação do direito romano próprio e verdadeiro, se bem que os grandes jurisconsultos romanos teriam chegado sozinhos a esta codificação, do mesmo modo que Roma sozinha construiu o seu império.

Certamente, para chegar à construção de um direito universal, natural, racional, humano, Roma teve que superar a própria nacionalidade. Instaurado o Império, Roma não desnatura o seu gênio político original, mas realiza-o, desenvolve-o, valoriza-o, pois Roma era naturalmente feita para se tornar a capital do mundo, caput mundi. E, paralelamente, o direito romano no corpus juris justiniano é o lógico desenvolvimento do original germe jurídico, que, surgindo na família, expande-se através da cidade e do estado, e culmina no Império. Do direito civil chega até ao direito das gentes, antes, até aquele direito natural, a que chega a filosofia pelos caminhos da razão.

A Educação Romana
O espírito prático romano manifesta-se também na educação, que se inspirou, entre os romanos, nos ideais práticos e sociais. Na história da educação romana podem-se distinguir três fases principais: pré-helenista, helenista-republicana, helenista-imperial. A primeira e fundamental instituição romana de educação é a família de tipo patriarcal, germe de uma sociedade mais vasta, que vai da cidade ao império: os patres governam a coisa pública. Educador é o pai, que na sociedade familiar romana desempenha também as funções de senhor e de sacerdote - paterfamilias. Nesta obra educativa colaborava também a mãe, especialmente nos primeiros anos e no concernente aos primeiros cuidados dos filhos, sendo, em Roma, mais considerada a mulher do que na Grécia, dadas as suas predominantes qualidades práticas. O fim da educação é prático-social: a formação do agricultor, do cidadão, do guerreiro - salus reipublicae suprema lex esto. Essencialmente práticos e sociais são os meios: o exemplo, o treinamento ministrado pelo pai que faz o filho participar na sua atividade agrícola, econômica, militar e civil, a tradição doméstica e política - mos maiorum; e a religião - pietas - entendida como prática litúrgica, sendo a religião, em Roma, diversamente do que era na Grécia, sumamente pobre de arte e de pensamento. E tudo isso sob uma disciplina severa. Enfim, prático-social era o próprio conteúdo teorético da educação, a instrução propriamente dita, que se reduzia a uma aprendizagem mnemônica de prescrições jurídicas, concisas e conceituosas - as leis das doze tábuas - que regulavam os direitos e os deveres recíprocos naquela elementar mas forte sociedade agrícola-político-militar.

A educação romana sofreu necessariamente uma profunda modificação, quando o antigo estado-cidade, desenvolvendo-se e expandindo-se para a nova forma do estado imperial - entre o terceiro e o segundo século a.C. - veio em contato com a nova civilização helênica, cuja irresistível fascinação também Roma sofreu. Sentiu-se então a exigência de um novo sistema educativo, em que a instrução, especialmente literária, tivesse o seu lugar. Esta instrução literária partiu precisamente da cultura helênica. Primeiro são traduzidas para o latim as obras literárias e poéticas gregas - por exemplo, a Odisséia -, depois estudam-se os autores gregos no texto original, enfim se forma pouco a pouco uma literatura nacional romana sobre o modelo formal da grega. E, deste modo, a princípio é a literatura grega que se difunde em Roma, depois, mediante a literatura, é o pensamento grego que penetra e se difunde, e afinal, através do pensamento, entra e se espalha a concepção grega da vida - porquanto estava pelo menos nas possibilidades do caráter latino.

Evidentemente, a família não estava mais à altura de ministrar esta nova e mais elevada instrução. As famílias das mais altas classes sociais hospedam em casa um mestre, geralmente grego - pedagogus ou litteratus. E, para atender às exigências culturais e pedagógicas das famílias menos abastadas, vão-se, aos poucos, constituindo escolas - ludi - de instituição privada sem ingerência alguma do estado. Essas escolas são de dois graus: elementares - a escola do litterator onde se aprendia a ler, escrever e calcular; médias - a escola do grammaticus - onde se ensinava a língua latina e a grega, se estudavam os autores das duas literaturas, através das quais se aprendia a cultura helênica em geral. Um terceiro grau será, enfim, constituído mediante as escolas de retórica, uma espécie de institutos universitários, que surgem com uma diferenciação e uma especialização superior da escola de gramática.

A sua finalidade era formar o orador, porquanto a carreira política representava, para o espírito prático romano, o ideal supremo. E, portanto, o ensino da eloqüência abrangia toda a cultura, do direito até à filosofia. O orador romano será o tipo do homem de ação, do político culto, em que a cultura é instrumento de ação - negotium e, logo, para os romanos, coisa muito séria, em relação com a seriedade da ação, e não simples distração - otium. Na reação dos conservadores contra a helenização da vida romana, os censores publicavam um decreto que condenava a escola latina de retórica (92 a.C.), por ser "novidade contrária aos costumes e aos preceitos dos maiores", e é definida até como ludus impudentiae. Acabam, todavia, por triunfar os inovadores, e a cultura helênica e os mestres gregos afluem a Roma sempre mais numerosos e bem acolhidos, enquanto a elite dos jovens romanos vai se aperfeiçoar nos centros de cultura helenista, especialmente em Atenas.

Juntamente com a organização do império organizam-se também as escolas romanas. Por certo, vindo a faltar a liberdade, vem a faltar o interesse político da cultura; as escolas de retórica perdem a função prática e social, transformando-se em meios de ornamento intelectual entre os lazeres de uma aristocracia cultural, o que, absolutamente falando, representa uma purificação da cultura no sentido especulativo, dianoético, grego; mas, relativamente ao espírito prático-social romano, significa uma decadência para o diletantismo. Seja como for, o estado romano mostra agora apreciar a cultura. Começam os imperadores romanos por conceder imunidade e retribuições aos mestres de retórica ainda docentes em casas particulares; depois o estado passa a favorecer e promover a instituição de escolas municipais de gramática e de retórica nas províncias; enfim são fundadas cátedras imperiais, especialmente de direito, nos grandes institutos universitários.

Um dos principais motivos de interesse imperial pela cultura e a sua difusão foi o fato de se ver nela um eficaz instrumento de romanização dos povos, um instrumento de penetração e de expansão da língua e dos jus romano, um meio, em suma, para o engrandecimento do império. E o resultado foi fecundo também para a cultura como tal, porquanto foi ela levada, embora modestamente, aqueles povos - Espanha, Gália, Grã-Bretanha, Germânia, províncias danubianas, África setentrional - a que o helenismo não pudera chegar. Tais escolas municipais foram tão vitais nas províncias, que muitas sobreviveram à queda do império romano ocidental, transformando-se em escolas eclesiásticas graças ao monaquismo cristão, e conservaram acesa na noite barbárica a chama da cultura clássica, preparadora dos esplêndidos renascimentos posteriores.

O teórico da pedagogia romana pode ser considerado Quintiliano. Nasceu na Espanha no II século d.C., foi professor de retórica em Roma, o primeiro docente pago pelo estado, quando Vespasiano era imperador. Na Instituição Oratória, em doze livros, expõe o processo de formação do orador - cuja figura ideal já delineara Cícero no De Oratore. Faz Quintiliano uma exposição completa, propondo programas e métodos que foram em grande parte adotados sucessivamente nas escolas do império. A instituição escolástica compreende os dois graus tradicionais de gramática e retórica. No curso de gramática ensinam-se a língua latina e a língua grega, a interpretação dos poetas - Vergílio e Homero - e as noções necessárias para este fim. No curso de retórica ensinam-se a interpretação dos historiadores - Lívio - e dos oradores - Cícero -, o direito e a filosofia, enquanto fornecem o conteúdo essencial à arte oratória. Um lugar de destaque ocupam as normas e as exercitações de eloqüência, o fim supremo da educação romana, segundo o espírito prático-político romana.

Período Religioso
Características Gerais
O quarto e último período do pensamento grego denomina-se religioso, porque o espírito humano procura a solução integral do problema da vida na religião ou nas religiões. O problema da vida é agudamente sentido, pelo fato de ser profundamente sentido o problema do mal. Deste problema não se acha, racionalmente, uma explicação plena, e, por conseguinte, se recorre à concepção de uma queda arcana, original, do espírito, de um conseqüente encarceramento do espírito no corpo, e de uma purificação e libertação ascética e mística. A desconfiança do conhecimento racional impede à evasão para um conhecimento supra-racional, imediato, intuitivo, místico, da realidade absoluta, para a revelação, o êxtase. Assim, o pensamento grego, que partiu de uma religião - positiva -, e a demoliu paulatina e criticamente nos grandes sistemas clássicos, volta, no seu término, para a religião. Já não se trata, porém, da velha religião grega, olímpica, homérica, absolutamente incapaz, devido aos seus limites naturalistas, humanistas, políticos, de resolver os grandes problemas transcendentes - do mal, da dor, da morte, do pecado - que nem sequer se propõe. Trata-se, ao contrário, das religiões orientais, semitas, místicas, misteriosóficas, especialmente propensas a estes problemas e fecundas em soluções do mais vivo interesse.

No período religioso permanecem os problemas do período ético, mas singularmente acentuados; procura-se-lhes a solução mediante uma metafísica completada pela religião. Tentar-se-á a síntese filosófica do dualismo platônico, do racionalismo aristotélico, do monismo estóico, e mais precisamente do transcendente divino platônico, do logos racional aristotélico, da alma estóica do mundo, em uma forma de triteísmo, em uma característica espécie de trindade divina. Nesta síntese metafísica prevalece o platonismo, com a sua radical separação entre o mundo sensível e inteligível, com a sua extrema transcendência da divindade, com a sua doutrina de uma queda original, com a sua religiosidade e o seu misticismo. Mas na metafísica neoplatônica - obra-prima deste período religioso - tal transcendência, característica do clássico dualismo grego, terminará no monismo emanatista.

O último período do pensamento grego abrange os primeiros cinco séculos da era vulgar: substancialmente, a idade do império romano, de que a filosofia religiosa neoplatônica forma como que a estruturação ideal; e também a idade da patrística cristã, com que o neoplatonismo tem contatos, intercâmbio e polêmicas. O centro deste movimento filosófico é Alexandria do Egito, capital comercial, cultural, religiosa do mundo cosmopolita helenista-romano, encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente, sede do famoso Museu.

O sistema metafísico predominante no período religioso é o neoplatonismo, e o seu maior expoente é Plotino (III século d.C.), cuja vida e pensamento nos foram transmitidos pelo discípulo Porfírio. O neoplatonismo, todavia, tem rumos precursores nos primeiros séculos da era vulgar: I - oriental, em Filo de Alexandria, que tenta a síntese do pensamento grego com a revelação hebraica, interpretada à luz do pensamento grego, mas a este supra-ordenada; II - ocidental, no novo pitagorismo, cujo maior representante é Apolônio de Tiana, e no platonismo religioso, cujo maior expoente é Plutarco de Queronéia. E também teve o neoplatonismo desenvolvimento nos últimos séculos do império romano: 1°. - na assim chamada escola siríaca, cuja mais notável expressão é Jâmblico, e exerceu também certa influência política com o imperador Juliano Apóstata; 2°. - na chamada escola ateniense, cuja mais notável expressão é Proclo, que sistematizou definitivamente e transmitiu aos pósteros o pensamento neoplatônico. Com a escola ateniense acaba, também historicamente, o pensamento grego, pelo encerramento dessa escola ordenado por Justiniano imperador (529 d.C.). Entretanto, o pensamento grego - o pensamento platônico, pelo menos - já tinha sido assimilado pelo pensamento cristão patrístico, e a sua parte vital tinha sido transfundida e valorizada no cristianismo.

Pesquise sobre Filosofia e outros assuntos: